24 abr , 2020
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Comemorações 25 de Abril 25 de Abril, Dia da Liberdade A palavra madura é espectáculo” (1)

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25 de Abril, Dia da Liberdade

A palavra madura é espectáculo” (1)

Um momento que comprova que “A palavra madura é espetáculo | Canta | Vive | E respira | Para tudo isso basta uma mão inteligente que a trabalhe | lhe dê a dimensão do necessário e do sentido e lhe amaine sobre o dorso o animal que nela dorme destemido.”
Eduardo White (poeta moçambicano)

A poucos dias de comemorar o 25 de abril a ACERT tomou a liberdade de convidar alguns escritores que escreveram textos teatrais ou viram as suas obras adaptadas para criações do Trigo Limpo teatro Acert, para escreverem uma frase, um parágrafo, um texto... sobre “celebrar o dia da liberdade em estado de emergência” ou “celebrar a liberdade sem liberdade”.


CARLOS SANTIAGO

Há muita malta na Galiza que sente o dia da liberdade como próprio. Foi o dia de sair à rua, e ainda que na Galiza não saímos nesse dia, e ainda estamos a espera de sair, foi como se saíssemos. É a ironia da coisa em si, que diria algum filósofo alemão.

Em galego há uma palavra, "ceive", que costuma ser interpretada como sinónimo de livre. Em origem dizia-se das vacas e dos bois quando ficavam à solta no prado. Já alguém me tem dito que no português do Minho ainda se usa o verbo "ceivar" com o sentido de desprender os bois do jugo. Os galegos, románticos como somos, quando nos emocionamos com o sonho da nossa independência e emancipação nacional, berramos sempre "Galiza Ceive!", pois interpretamos a liberdade no mesmo sentido em que a interpretam os nossos bois e as nossas vacas. Como uma utopia ruminante, é claro.

Esse é o paradojo do confinamento, que ainda somos livres, mas não estamos ceivos. E se calhar, no dia em que nos ceivem, deviamos reflectir sobre a natureza dos jugos que carregamos no lombo quando não temos o medo da peste no corpo. Pode ser que nesse tempo, agora almejado, estejamos ceivos, mas não sejamos livres. Bolsonaro e Trump sabem de que falo.

Grande abraço, irmãos.
Carlos Santiago


EDUARDA DIONISIO

O regresso deste consensual vocabulário dominante... Família, Estado, Propriedade (privada) + Obediência, regresso à Normalidade, etc., etc... ainda me põe mais confinada (que aliás já estava antes da «emergência»...) e menos calhada para «milagres».

Não me sai da cabeça aquele bonequinho de 68... que vai em anexo... e que nos puseram hoje a desejar...


JAIME ROCHA

Poema de Abril

Há um caminho de castanheiros inundado
por flores que morrem todas as manhãs.
Um caminho por onde passam os seres
que fabricam as caixas onde se guardam
os brinquedos.

Tem luzes e sombras que se escondem
por detrás das árvores onde nascem agora
grandes cogumelos brancos, uma zona
deixada para a humidade dos bosques.

E há uma loucura nas aves que ali vão
fazer os ninhos, um momento de felicidade
antes da agonia_________________.

Os pássaros já compreenderam a raça
dos humanos, a sua ideia maligna do universo.

Os pássaros não morrem como nós.


MÁRCIA ZANELATTO

Um abraço para todos, até já.

Um abraço pra senhora insone que dá voltas na portaria. Um abraço pra mulher que toca o violão e não concilia o sono. Um abraço pro velhinho que passou o dia com a TV ligada e conciliou. Um abraço pro motoqueiro do Ifood - pros 35 motoqueiros do Ifood. Um abraço pro zelador do hostel vazio. Um abraço que eu nunca vou dar para cada desconhecida vida que se insinua nessa madrugada, pela janela. Aquele abraço.

Abraçaria.
Não abraçaria.
Não faria sentido abraçar essas pessoas não fosse o terror instaurado por um apocalipse – o apocalipse que esperávamos rave, veio modinha.
E que extravagante liberdade se constitui um simples abraço agora.
Liberdade como desejo de não sentir medo. Não como abundância de teres, poderes e sentires. Liberdade como resposta ao terror.
Porque abraçar me aterroriza, abraçar é minha liberdade – minha utopia.

Se não posso te dar um abraço, meu amigo, eu evoco um abraço para ti. E que ele se faça em seu corpo-teatro, ainda que fora do gesto. Um abraço como flechada de tempo sem espaço.

mz
Rio, 21 de Abril de 2020


POSSIDÓNIO CACHAPA

"A liberdade não desaparece. Adia-se, esconde-se num canto enquanto a noite se move destrutiva. Mas vive sempre em cada pessoa, desde que nasce. As paredes das prisões são ilusórias, apenas os tijolos físicos precisam, de vez em quando, de ser deitados abaixo. Com a força dos braços e da coragem. O 25 de Abril nunca deixou de existir, mesmo antes de ter esse nome. Ficou apenas na sombra enquanto bandos de homens gordos - mortos todos, ou quase todos, hoje - dançavam e outros que deixavam dançar, em si, o pior que o ser humano é capaz de transportar. Precisou de um mar de flores para varrer para longe o cheiro do mofo, da hipocrisia, da tortura em nome de valores que não eram morais mas financeiros e de poder.

Estar confinado não é estar preso. É saber-se livre pela sua escolha. É ter o 25 de Abril lá dentro.
Cantá-lo? Cantará quem tiver a voz cheia de cravos. De qualquer cor, já agora."

Possidónio Cachapa


R. M. MACÁRIO

O epítome da liberdade falhada, do Homem preso que não foge porque não pode ou consegue, passa-nos pelo lugar comum do desejo de ver árvores e ouvir passarinhos. Livre como um passarinho, dizem.

Os pássaros, passarões e passarinhos são os dias hoje. Se nada mais, um cantar ou chilrear vem constante. O zumbido da máquina arrefeceu. Ouvem-se tantos nas árvores, pássaros, passarinhos e passarões, que não pode à mente vir a ideia de outra coisa que liberdade. Estar livre, como o contrário de estar preso – diria a senhora – algures, nas casas de onde se não deve sair. Com os pássaros lá fora, a cantar. Da madrugada ao cair da noite. Pássaros.

Raispaliram” os pássaros que andam de árvore em árvore a cantar. Se cantam e os vemos estamos bem. Devemos estar livres como os passarinhos.

Palram pega e papagaio
e cacareja a galinha

os ternos pombos arrulham
geme a rola inocentinha
(…)

Isto (e o resto que nunca fixei) repetia meu pai quando em pequeno íamos à terra. Terra, como se a terra de onde íamos fosse um Mundo comparado com aquela a onde íamos. As terras pequenas são assim umas para as outras, tratam-se menos bem embora, no fundo, gostem umas das outras. De viagem, a caminho, lá vinham as “Vozes dos Animais”. Sempre me agradaram as viagens com as vozes dos animais que não sabia serem tantas e tão diversas. Agora ouço-as ali mesmo à distância dos sinos que se voltou a notar e da chamada do quartel, que não sei se de cornetim ou qualquer outro instrumento de sopro (ou como os sinos modernos, que são antes gravações, gravadas e repetidas, audíveis, num entoar de Avé, Avé). Alvorada! Gritou um dia um sonâmbulo num parque de campismo. Alvorada! E correu para longe. O cornetim do quartel é o mesmo. Alvorada! Agora não poderia ver sonâmbulos nos parques de campismo. Posso recordar-me deles, até porque nunca gostei de campismo.

Lá fora continua. Pegas há umas quantas. Papagaio tem o vizinho (não sabia que o vizinho tinha um papagaio; continuo sem saber qual vizinho e porque tem o papagaio). Galinhas e galos há muitos. Põem ovos e galam-se (e galinham-se talvez). Imagino. Pombos menos embora batam asa ocasional. Rolas sim. Rolas gemem agrupadas nos fios que serão de eletricidade ou cabo. “Raispaliram” as rolas mais que os outros pássaros. Sempre tristes as rolas.

Mas são livres de ser tristes. E porque podem devem poder poder. Nestes dias custa poder não poder. Poder dever não partilhar um carro em viagem com as “Vozes dos Animais”. Dizer “um abraço” e ser apenas um modo idiossincrático de assinalar uma despedida, em vez de um toque. Um “não to dou mas fica por conta”, na venda da aldeia, se lá voltasse.

Fica seguro, diz-se agora. Sem abraço. Sem gente em magote que isso talvez faça mal. Em liberdade de agir com recato e distância; de agir em consciência de temor próprio e alheio. Também há temor. Fica-se em casa até que se possa sair. Porque se deve poder. A festa festança com copos e cantos desafinados faz-se em conjunto quando se puder abraçar. Agora faz-se o calendário da festa porque a festa é ela mesma e acontece só porque sim, porque é o lugar dela, porque foi preciso alguém fazer o dia da festa e isso custou mais que o que parece; além de que dizer não à festa porque não há roda e multidão, é como se não dar abraços fosse não querer quem se não abraça. “Aquele Abraço” dizia do outro lado do Mundo Atlântico o telefonema embalado. Era o que faltava não podermos dar abraços do outro lado da vídeo-chamada; não poder enviar sinais emoji símbolo qualquer de abraço e toque; não poder dizer que é importante a festa ainda que seja tristonha a festa sem multidão. A festa é saber que alguém cantou para que nenhum canto fosse interrompido, mesmo o dos pássaros que agora se não calam. Não fazer festa é deixar que outros escolham por nós o que festejar. “Raispalira” para isso.

R. M. Ribeiro (Viseu, 2020-04-19)


SARA FIGUEIREDO COSTA

25 Abril

Será a primeira vez em vários anos que não desço a Avenida da Liberdade no dia 25 de Abril. Desde que me lembro, isso aconteceu apenas duas vezes. Numa delas, estava a viver em Santiago de Compostela e, depois de tentar comprar cravos vermelhos no Mercado de Abastos (onde só havia cravos cor-de-rosa), acabei a celebrar a revolução num bar chamado Avante, onde dezenas de galegos cantavam, emocionados e algo alcoolizados, a "Grândola, Vila Morena" e várias outras peças do cancioneiro revolucionário português. Na outra, estava num avião a caminho da Colômbia, em trabalho, e não consegui mais do pensar na multidão que estaria na avenida enquanto me agarrava aos braços da cadeira, forçando-me a acreditar que o avião não havia de cair. Este ano, celebrarei em casa, usando a varanda para descobrir se a vizinhança é dos nossos ou da reacção quando, às 15 horas, se ouvir a "Grândola, Vila Morena". Espero não me desiludir. Isto do confinamento tem as suas dificuldades quotidianas, obviamente mitigadas pelo facto de viver numa casa confortável e não me faltar comida e outras coisas essenciais – parece básico, mas não é, de todo, universal. O confinamento num dia em que o que se quer é estar na rua, abraçar amigos e celebrar a democracia que foi conquistada a duras penas depois de décadas de fascismo, é coisa um bocadinho mais difícil de aceitar. De certo modo, é como celebrar a liberdade sem a liberdade de celebrar. Mas talvez também seja celebrar a liberdade cumprindo uma das ideias de Abril, a que assume a comunidade e o colectivo como elemento fundamental da sociedade (aqui, há espaço para agitação ideológica e saudável discussão – eu digo que é fundamental, mas não único), a que dá importância àquilo a que chamamos bem comum. "A paz, o pão, a habitação, saúde, educação..." Este ano, atender ao colectivo é usar a consciência para não colocar ninguém em risco, nem nós, nem aqueles que partilhariam a descida da avenida connosco, menos ainda os que, não estando lá, podiam ser atingidos pelas ondas de choque que um surto ali nascido certamente provocaria. É por isso que fico em casa, nos outros dias, sim, mas neste dia 25 com a consciência mais ancorada nesta ideia de contribuir para aquilo que é de todos. A enxada será ou não será da "comprativa", podemos discuti-lo acaloradamente, mas a responsabilidade é, não tenho dúvidas, de toda a gente. Mesmo de toda a gente. Até dos sacanas dos vizinhos que vão torcer o nariz à "Grândola".

Sara Figueiredo Costa