19 jul , 1995
QUA
fora de cena O Adormecer Da Razão Trigo Limpo teatro ACERT
19 jul , 1995
QUA

fora de cena

Calendarização

19 jul
qua
01:00
Viseu  (Museu Grão Vasco e Adro da Sé)

O Adormecer Da Razão

Trigo Limpo teatro ACERT

Produção criada especialmente para acompanhar a exposição“Instrumentos de Tortura  e de Pena Capital”. Procurou-se criar uma situação de grande densidade dramática,  e que provocasse forte relação com  o público. Os rituais foram recriados, e a dramaturgia abordou incisivamente depoimentos e descrições, em interpretações que exploravam a relação com os instrumentos reais de tortura expostos.
No final, era apresentado um talk show televisivo, que assumia uma atitude corrosivamente crítica da exploração da espectacularidade mediática da violência.

Cadernos de Teatro O Adormecer da Razão

Ficha técnica e artística

Estreia 19 de Julho de 1995, Viseu
Museu Grão Vasco e Adro da Sé

Percurso teatral pela Exposição de Instrumentos Europeus de Tortura e Pena Capital
Dramaturgia e encenação Pompeu José
Elementos cénicos e adereços José Tavares Paulo Leão
Figurinos José Rosa
Som e luz Luís Viegas
Elenco José Rosa, José Rui, Pompeu José e Raquel Costa
Bibliografia
“Computa, computador, computa” de Millor Fernandes “Assim Falava Zaratrusta” de F. Nietsche
“Tire a Mãe da Boca” de João David Nunes “Poema” de Manuel Alegre
“Relatos da Guerra do Ultramar”
“Discursos de Generais Alemães da I Guerra”


Excerto de texto

Cena 2

VIÚVA – (Canta, depositando flores nos objectos de tortura) Se sabeis novas do meu amigo/ Novas dizei-me que vou morrendo/ Por meu amigo que me levaram/ Num carro negro de madrugada. (…)
(Soldados-padres perseguem-na com cruzes ao peito que têm dentro um punhal)
SOLDADO-PADRE 1 – A guerra é santa, ela foi instituída por Deus! A guerra não é apenas uma necessidade prática, ela é também uma necessidade teórica, uma exigência da lógica. Uma longa paz relaxa as molas da alma e enfraquece as qualidades másculas do carácter…
Todo aquele que sonha com uma paz perpétua, deseja não só uma coisa irrealizável, mas ainda absurda: ele comete um elementar erro de raciocínio. (Soldados-padres atam viúva) E se a guerra é acompanhada de tantas atrocidades, ver-se-á bem depressa que nela existe alguma coisa de divino, tão necessário, tão útil ao mundo, como a acção de comer ou de beber, por exemplo…
TODOS OS SOLDADOS-PADRES - (com as cruzes na mão, ainda só cruzes) Deus ainda vive e ainda está connosco, é o nosso grande aliado.
SOLDADO-PADRE 2 – O nosso exército é o bloco de granito sobre o qual o bom Deus poderá ter- minar a sua obra de civilização do Mundo.
SOLDADO-PADRE 3 – A luta será uma luta de extermínio, uma luta de vida ou de morte. Só deveis deixar às populações por onde passardes os olhos para chorar…
SOLDADO-PADRE 2 – Todo o teólogo reconhece que a expressão bíblica “Tu não matarás” não deve mais ser tomada no sentido estritamente literal…
Só alguns visionários tímidos fecham os olhos ante o esplendor com que o velho testamento celebra a soberana beleza de uma guerra justa e santa. Não há senão uma lei única, a desta vida, que é a de querer, não o bem, não a verdade, mas a potência de se expandir, de crescer, de se ultrapassar a si mesmo e como consequência, de odiar, de combater, de destruir ou devorar tudo.
TODOS OS SOLDADOS-PADRES – A vitória será seguramente nossa!
SOLDADO-PADRE 3 – Irmãos na guerra! Amo-vos de todo o coração. Eu sou vosso semelhante, sou também vosso inimigo… Deixai-me por- tanto dizer-vos a verdade! Conheço o ódio e a inveja; e nalguns de vós se descobre o ódio à primeira vista.
Vós deveis procurar o vosso inimigo e fazer a vossa guerra, uma guerra por vossos pensa- mentos. E se o vosso pensamento sucumbe a vossa lealdade contudo deve cantar vitória.
Afirmai o que quiserdes, dizei que a guerra torna os homens bárbaros e afoga as melhores virtudes, se eu vos ordenar que atireis contra o vosso pai ou contra a vossa mãe, é preciso executar as minhas ordens sem murmurar:
Só deveis deixar às populações por onde passardes os olhos para chorar…
(…)
ARLEQUIM – Os soldados, na sua divagação, encontraram uma mulher grávida, perguntaram-lhe pelo sexo que levava dentro…
VIÚVA – “Não sei”.
ARLEQUIM – Respondeu ela.
SOLDADOS-PADRES – “Já o saberás!”
ARLEQUIM - Disseram-lhe eles. Imediatamente a facadas…
(Soldados-padres abrem cruz e espetam os punhais na barriga da Viúva. Afastam-se. Arlequim tira fitas vermelhas da barriga dela e dá ao público para segurarem.)
Abriram-lhe o ventre, extraindo-lhe violentamente as vísceras. e mostrando- lhe o feto que se debatia convulsivamente, diziam:
SOLDADOS-PADRES – “Já sabes agora?”
ARLEQUIM – Mãe e filho foram consumidos pelas chamas…
GUARDA DO MUSEU – (Tirando as fitas e desatando a viúva) Chinteya, uma rapariga de quatro anos, assustada chora. Um soldado, simulando compaixão, aproxima-se e, acariciando a criança, pergunta-lhe se está com fome. Sem, porém, esperar a resposta continua,:“Toma o biberão” e, metendo à força o cano de uma arma de fogo pela boca da criança, diz: “Chupa”, e dispara. (Ouve-se tiro.) A criança cai com um rombo na nuca.
VIÚVA – (Canta) Já da ternura fiz uma corda/ Ó vento prende-a na Torre Negra./ Que meu amigo por ela desça./ Por essa corda feita de lágrimas/ Que meu amigo por ela desça./ Ou mande a esperança que vai tecendo./ Que eu desespero sem meu amigo.

(Cada actor escolhe um instrumento de tortura e diz, ao seu ritmo, o texto)

excerto do texto “O Adormecer da Razão”

 


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